domingo, 28 de junho de 2009

CASA DA AVÓ AMÉLIA, DIA 1.

Juro, não vou aguentar isto por muito tempo.
A abrir, D. Amélia está para morrer. Como sempre.
Desta vez, está quase a cair para o lado com uma dor na perna que a impossibilita de andar como as pessoas normais e que a faz gemer de dor a cada corrente de ar.
Nada que a impeça de ir beber a bica à Associação dos Reformados, é claro. Ou de ir a uma excursão com os restantes reformados.
Depois de uma listagem tamanho Lusíadas de queixas e maleitas, lá me decido a dar a volta à quantidade absurdamente exagerada de papéis que trouxe, e que não tive tempo nem cabeça para ver.
Pensem duas vezes quando desejarem que os vossos filhos se tornem professores.
Quando olho para esta pilha de folhas, cartões, capas, ficheiros, apontamentos, fotocópias outrora brutalmente importantes e porcarias afins, recordo-me de mim própria, desdentada, convicta (mais para a frente, vão perceber que sou de convicções cerradas e teimosas desde muito cedo e de forma acentuadamente prolongada), olhar sonhador, com um totó de cada lado e um cravo enorme no queixo a dizer à D. Maria da Neves, senhora minha professora primária: “Quando crescer, quero ser professora!”
Um dia, hei-de fazer uma regressão para olhar bem para o sorriso dela. Aquilo que, na altura, me pode ter parecido um rasgo de orgulho, pode ter sido, mais precisamente, um esgar de dor.
Pelas dores futuras de quem teria de partilhar um espaço de habitação comigo.
Perguntem ao Sr. Dupla Personalidade.
De qualquer forma, num dia de calor infernal, sem uma brisa que acalmasse ânimos e espíritos, aquela pilha ardeu toda até abaixo.
E também a mantinha demoníaca.
“Mantinha Demoníaca” foi a designação dada a uma mantinha VERDADEIRAMENTE HORROROSA comprada pelo Sr. Dupla Personalidade num belo dia em que fomos todos para o Ikea e em que fui categoricamente ignorada pelo meu então marido, em detrimento da então esposa do então melhor amigo dele, agora sua actual namorada e ex-mulher do seu ex-melhor amigo. Ex-amigo, de qualquer forma.
A dita mantinha ganhou essa designação derivado do facto de ter caído no goto de ambos – Sr. Dupla Personalidade e Miss Fashion-Bitch-quero-ser-a-Angelina-Jolie – e de ter sido adquirida com um sorriso ultra-parvo no rosto, além de ter desaparecido em alturas de desaparecimentos suspeitos (desconfio até que ele a tinha no carro para a poder snifar em momentos de intimidade e solidão), e que um dia desapareceu de todo.
Felizmente, apareceu dentro do armário dias antes de eu deixar o apartamento, pelo que aproveitei a ocasião, apesar de já lhe ter chamuscado uma ponta, para a trazer e tostar até aos fundilhos.
Devo dizer que aquele material é uma porra para queimar. Muito custoso.
Mas lá foi tudo.
Senti-me um pouco melhor mas, basicamente, o dia foi uma merda.
Mexer em coisas antigas faz disto.
Uma pessoa a tentar esquecer, e só aparecem à nossa frente coisas que fazem lembrar.
Raios!!!
Mesmo assim, ainda olho para aqueles papéis todos que sobraram com ganas de queimar mais qualquer coisita…
Estava o dia assim nestes preparos quando, para abrilhantar a cena, eis que surge Tia TS.
Em véspera de dar entrada no hospital para uma cirurgia a uma hérnia.
Obviamente porque lá no hospital não a querem manter mais tempo do que o estritamente necessário.
Ela foi funcionária das cozinhas há uns anos atrás, e muita gente não a esqueceu ainda.
A Tia TS tem aquele gostinho e aquela delicada forma de deitar mais achas na fogueira.
Sem nada de mais urgente para a entreter, dedica-se a estar sentada e a observar minuciosamente os meus movimentos à espera que eu abra o bico, enquanto faz a sua prótese dentária rodopiar entre a sua língua e as suas gengivas. Coisa de pensionista.
Faz com que, no silêncio, ecoem pequenos estalidos ricos em matéria salivar. Brrrr…
Obviamente, ignoro-a.
Isso não a desmotiva, é claro, pelo que sou bombardeada com todo o tipo de perguntas e comentários que, “por favor, não quero ouvir agora!!”
Desde o “então, ele agora está lá com a outra?” (não sei, não me interessa e não quero saber) até ao “ai, filha, um quarto, cozinha e casa-de-banho já chega para ti, pra que é que precisas de mais!” (pois, senhora dona viúva solitária que mora num último andar de uma vivenda com dois quartos ENORMES, uma cozinha com zona de refeições ENORME e uma sala ENORME e cheia de mariquices, e ainda tem um apartamento ENORME no centro da cidade, vazio!)

Amanhã já estás com o tubinho pela goela abaixo, caraças! Vais ver o que é estar calada!
Deus, dai-me coragem!
E um apartamento no centro, bem depressinha, se fazes favor.
Também, depois da porcaria que tenho estado a aturar neste últimos meses, bem mereço um golpe de sorte ou dois, Tens que admitir!
(Foi o que pedi na altura. E não é que o Gajo mandou um mesmo à maneira! Um fixola, é o que lhes digo!)

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